Leis de anistia
Uma lei de anistia é qualquer arranjo legislativo, constitucional ou executivo que isenta retroativamente um grupo seleto de pessoas, geralmente líderes militares e líderes do governo, de responsabilidade criminal pelos crimes que cometeram.[1] Mais especificamente, na "era da responsabilização", as leis de anistia passaram a ser consideradas como concedendo impunidade por violações dos direitos humanos, incluindo medidas institucionais que impedem o processo por tais crimes e exoneram os crimes já condenados, evitando qualquer forma de responsabilização.[2]
História
Muitos países foram atormentados por revoluções, golpes de Estado e guerra civil. Após tal turbulência, os líderes do regime de saída que desejam, ou são forçados, a restaurar a democracia em seu país são confrontados com possíveis litígios relativos às ações de "contrainsurgência" tomadas durante seu governo. Não é incomum que as pessoas façam alegações de abusos dos direitos humanos e crimes contra a humanidade. Para superar o risco de serem processados, muitos países absolveram os envolvidos dos crimes a que são acusados.
As leis de anistia são frequentemente igualmente problemáticas para o lado oposto como um problema de custo-benefício: levar a antiga liderança à justiça vale a pena estender o conflito ou governo do regime anterior, com um aumento concomitante de sofrimento e baixas, conforme o antigo regime se recusa largar o poder?
As vítimas, suas famílias e organizações de direitos humanos - por exemplo, Anistia Internacional, Human Rights Watch - se opuseram a tais leis por meio de manifestações e litígios, argumentando que uma lei de anistia viola o direito constitucional local e o direito internacional ao manter a impunidade. O Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários da ONU afirma que leis de anistia são ilegais mesmo quando tenham sido aprovadas em referendo ou em consultas populares.[3]
Conceder anistia para "crimes internacionais" - que incluem crimes contra a humanidade, crimes de guerra e genocídio - é cada vez mais considerado proibido pelo direito internacional. Esse entendimento é extraído das obrigações estabelecidas nos tratados de direitos humanos, das decisões dos tribunais internacionais e regionais e da lei emergente da prática estatal de longa data (direito internacional consuetudinário). Os tribunais internacionais, regionais e nacionais têm revogado cada vez mais as anistias gerais e os recentes acordos de paz evitaram amplamente a concessão de anistia para crimes graves.[4] Com isso em mente, o Tribunal Penal Internacional foi estabelecido para garantir que os perpetradores não se esquivem da responsabilidade de comando por seus crimes, caso o governo local não os processe.
As Diretrizes de Belfast sobre Anistia e Responsabilidade estabelecem uma estrutura para avaliar a legalidade e legitimidade das anistias de acordo com as múltiplas obrigações legais enfrentadas pelos estados em conflito ou transição política.[5] Elas foram de autoria coletiva de um grupo de especialistas internacionais em direitos humanos e resolução de conflitos liderados por Louise Mallinder e Tom Hadden, do Transitional Justice Institute, um instituto de pesquisa da Universidade de Ulster, Irlanda do Norte, no Reino Unido.
Por país
África do Sul
Após o fim do apartheid, a África do Sul decidiu não processar, mas em vez disso criou a Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR). Seu objetivo era investigar e elucidar os crimes cometidos durante o regime do apartheid, sem indiciar, em uma tentativa de tornar os supostos perpetradores mais complacentes para cooperar.
A CVR ofereceu "anistia pela verdade" aos perpetradores de abusos dos direitos humanos durante a era do apartheid. Isso permitiu que os abusadores confessassem suas ações à CVR para obter a anistia. Isso despertou muita polêmica no país e internacionalmente.[6]
Argentina
A Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), liderada pelo escritor Ernesto Sabato, foi criada em 1983. Dois anos depois, o Julgamento das Juntas conseguiu provar os crimes das várias juntas que haviam formado o autodenominado Processo de Reorganização Nacional. A maioria dos oficiais de alto escalão julgados foram condenados à prisão perpétua: Jorge Rafael Videla, Emilio Eduardo Massera, Roberto Eduardo Viola, Armando Lambruschini, Raúl Agosti, Rubén Graffigna, Leopoldo Galtieri, Jorge Anaya e Basilio Lami Dozo. No entanto, o governo de Raúl Alfonsín votou duas leis de anistia para evitar a escalada dos julgamentos contra militares envolvidos em violações dos direitos humanos: a Lei de Ponto Final de 1986 e a Lei de Obediência Devida de 1987. O presidente Carlos Menem perdoou os líderes da junta e os comandantes sobreviventes das organizações guerrilheiras esquerdistas armadas em 1989–1990. Após persistente ativismo das Mães da Praça de Maio e outras associações, as leis de anistia foram derrubadas pela Corte Suprema de Justiça da Argentina quase vinte anos depois, em junho de 2005. No entanto, a decisão não foi aplicada aos líderes guerrilheiros.
Brasil
Em 1979, a ditadura militar do Brasil - que reprimiu dissidentes políticos, esquerdistas, comunistas e sindicalistas - aprovou uma lei de anistia. Esta lei permitiu o retorno de ativistas exilados, mas também foi usada para proteger os violadores dos direitos humanos de processos judiciais. Os autores de violações dos direitos humanos durante a ditadura militar no Brasil de 1964 a 1985 nunca foram processados criminalmente.[3] Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou a lei de anistia do Brasil ilegal por causa das disposições que "impedem a investigação e punição de graves violações de direitos humanos" e condenou o Brasil por não investigar e condenar os culpados pela “detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região [...], resultado de operações do exército brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975” durante a Guerrilha do Araguaia.[3] O ministro do STF, Marco Aurélio Mello afirmou em resposta que a decisão da Corte Internacional tinha eficácia apenas política, mas que não possuía validade legal.[7][3] Em julho de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou novamente o Brasil pela "falta de investigação, de julgamento e de punição dos responsáveis" pela prisão, tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog", ocorrida em 1975.[8]
Espanha
Em 1977, o primeiro governo democrático eleito após a morte de Francisco Franco aprovou a Lei 46/1977, uma lei de anistia que isentava de responsabilidade todo aquele que cometeu qualquer crime por motivos políticos antes desta data. Essa lei permitiu a comutação das sentenças dos acusados de ataque à ditadura e ao mesmo tempo foi usada como motivo para não investigar e processar as violações dos direitos humanos ocorridas no período.[9]
Em fevereiro de 2012, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos exigiu da Espanha a revogação da Lei de Anistia de 1977, sob o argumento de que viola o direito internacional. O Comissário referiu-se à obrigação da Espanha de cumprir o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. De acordo com o direito internacional, não há prescrição para crimes contra a humanidade.[10] Em 2013, um grupo de trabalho de especialistas da ONU pediu novamente à Espanha que revogasse a lei de 1977.[9]
Reino Unido
A chamada "Lei Alan Turing" é uma proposta de lei de anistia para homens condenados por sexo homossexual consensual antes da aprovação da Lei de Ofensas Sexuais de 1967. Em 2017, a proposta de anistia foi incorporada como uma emenda na Inglaterra e no País de Gales como uma emenda à Lei de Policiamento e Crime de 2017.[11][12][13]
Referências
- ↑ «Amnesty». Crimes of War Project (em inglês). Consultado em 29 de agosto de 2021. Arquivado do original em 21 de novembro de 2010
- ↑ Lessa, Francesca; Olsen, Tricia D.; Payne, Leigh A.; Pereira, Gabriel; Reiter, Andrew G. (março de 2014). «Persistent or Eroding Impunity? The Divergent Effects of Legal Challenges to Amnesty Laws for Past Human Rights Violations». Israel Law Review (em inglês) (1): 105–131. ISSN 0021-2237. doi:10.1017/S0021223713000289. Consultado em 29 de agosto de 2021
- ↑ a b c d Charleaux, João Paulo (24 de dezembro de 2015). «Por que torturadores da ditadura não vão para a cadeia no Brasil». Nexo Jornal. Consultado em 29 de agosto de 2021
- ↑ «Pursuing Peace, Justice or Both?». International Center for Transitional Justice (em inglês). 25 de abril de 2011. Consultado em 29 de agosto de 2021
- ↑ «Transitional Justice Institute» (em inglês). Consultado em 29 de agosto de 2021
- ↑ «South Africa & Transitional Justice». International Center for Transitional Justice (em inglês). 25 de fevereiro de 2011. Consultado em 29 de agosto de 2021
- ↑ «Presidente do STF afirma que punição da OEA não anula decisão sobre a Lei da Anistia». Folha de S.Paulo. 15 de dezembro de 2010. Consultado em 29 de agosto de 2021
- ↑ Charleaux, João Paulo (4 de julho de 2018). «Brasil condenado no caso Herzog: qual o peso da decisão internacional». Nexo Jornal. Consultado em 29 de agosto de 2021
- ↑ a b «U.N. tells Spain to revoke Franco-era amnesty law». Reuters (em inglês). 30 de setembro de 2013. Consultado em 29 de agosto de 2021
- ↑ «Spain must lift amnesty for Franco era crimes-U.N.». Reuters. 10 de fevereiro de 2012. Consultado em 29 de agosto de 2021. Arquivado do original em 31 de outubro de 2017
- ↑ «'Alan Turing law': Thousands of gay men to be pardoned». BBC News (em inglês). 20 de outubro de 2016. Consultado em 29 de agosto de 2021
- ↑ «Thousands officially pardoned under 'Turing's Law'». Governo do Reino Unido (em inglês). Consultado em 29 de agosto de 2021
- ↑ «'Turing's Law' will pardon thousands of men convicted in UK for being gay». PBS NewsHour (em inglês). 20 de outubro de 2016. Consultado em 29 de agosto de 2021